Edição 403 – Julho/2025
Médico fala de saúde mental no trabalho, dificuldades de diagnóstico e gestão nesta área pelas empresas
Entrevista à jornalista Daniela Bossle
Marcos Mendanha é médico, advogado e professor. Especialista em Medicina do Trabalho, Medicina Legal e Perícia Médica, e Direito do Trabalho, ele percebeu logo que a área de Medicina do Trabalho tinha interfaces com muitas outras, o que lhe motivou a seguir se aprofundando, com grande interesse na saúde mental ocupacional. Pós graduando em Neurociências e Comportamento, hoje divide a sua agenda entre a coordenação da Faculdade Cenbrap, que promove estudos, cursos e eventos sobre psiquiatria e saúde mental do trabalhador e ministrando palestras em todo o país sobre temas afins.
Nesta entrevista Mendanha fala da explosão dos afastamentos do trabalho por transtornos mentais no último ano e vai além: para ele, a principal causa da elevação é o sistema digital do governo que permite aos segurados obter benefícios sem perícia médica. Mesmo assim, o aumento não deixa de ser preocupante exigindo adequado gerenciamento deste risco pelas empresas. Mas o especialista critica o novo texto sobre riscos psicossociais da NR 1, que considera “vago, impreciso e trazendo muito mais perguntas do que respostas”. Quando fala da síndrome de burnout, tema do seu último livro, traz uma informação pouco difundida: que o burnout, na verdade, não está classificado pela OMS como doença. Para ele, esta falha de entendimento no Brasil tem gerado diagnósticos e condutas equivocadas e mais sofrimento mental.
Você é um profissional com múltiplas formações e atuações bem diversificadas, mas o tema transtorno mental e trabalho tem sido uma prioridade em sua agenda. Esta é a pauta do momento?
Sim, creio que seja a pauta do momento e do meu momento! Como médico, quando escolhi a Medicina do Trabalho como especialidade, logo percebi a riqueza das suas interfaces. Foi pela Medicina do Trabalho que fiz outra graduação em Direito e posteriormente uma pós-graduação em Direito do Trabalho. Também pela Medicina do Trabalho, fiz uma pós-graduação em Psiquiatria pela Faculdade Cenbrap, instituição que tenho a honra de dirigir. Com essa bagagem escrevi meu último livro “O que ninguém te contou sobre burnout”, da Editora Mizuno, que me abriu – e ainda abre – muitas outras portas profissionais. E como a agenda é limitada, posso dizer que sim, o tema transtornos mentais e sua interface com o trabalho é atualmente uma prioridade na minha agenda profissional.
Muito tem se falado a respeito da crise na saúde mental do brasileiro com um número recorde de afastamentos do trabalho em 2024 por transtornos mentais. Porém esses benefícios não são acidentários pelo que informa a Previdência. Qual a sua interpretação?
De 2023 para 2024 houve um aumento de 68% no número de afastamentos por transtornos mentais no Brasil. Foram quase 500 mil afastamentos no último ano. Isso é absolutamente verdadeiro. Mas podemos dizer que o trabalho é o principal responsável por esses números? Não. Ao contrário do que muita gente imagina, de 2021 para 2024 a porcentagem dos números de transtornos mentais relacionados ao trabalho só caiu, segundo dados do próprio INSS. Era 5,2% em 2021; 4,9% em 2022; 3,7% em 2023; e chegou a 2,1% em 2024. O que explica esse número de afastamentos tão expressivo então? A principal hipótese se chama Atestmed, que desde 2023 permite que muitos segurados do INSS consigam benefícios sem a realização de perícias médicas. O objetivo anunciado da ferramenta é muito nobre, diminuir as filas do INSS, o que, num primeiro momento, de fato ocorreu. Mas o efeito colateral foi um aumento brutal no número de afastamentos e não só por transtornos mentais. O número de afastamentos por doenças osteomusculares também aumentou mais de 60% no ano passado, totalizando quase 900 mil afastamentos. Tudo isso elevou os gastos do governo para um patamar surpreendente. Tanto assim que, ainda em 2024, voltou a ser obrigatória a perícia médica presencial para possíveis benefícios por doenças osteomusculares. Na mesma linha, a recente Medida Provisória 1.303 de 11 de junho de 2025 diminuiu o prazo de benefícios concedidos por via Atestmed, de 180 dias para 30 dias apenas, ou seja, mais uma medida para remediar o aumento excessivo dos gastos, o que foi constatado pelo próprio governo.
De qualquer forma é um número muito alto. Foram quase 500 mil benefícios concedidos por conta de transtornos mentais no ano passado. Além do Atestmed, o que mais pode ter contribuído para esta explosão de casos?
Sim, é um número muito expressivo. Para além do Atestmed, para além do trabalho, o número de diagnósticos de transtornos mentais tem aumentado entre todas as faixas etárias, sobretudo entre crianças, jovens e idosos. Chama a atenção o fato de crianças e idosos estarem no topo dessa lista. Isso porque são pessoas que sequer entraram no mundo do trabalho, ou até já saíram dele. O mundo não parece saudável. Alguns trabalhos certamente contribuem com isso, mas o trabalho, no sentido geral, não é o maior algoz desse adoecimento. Ao contrário. O bom trabalho protege as pessoas. Segundo a revista The Lancet, de outubro de 2023, o desemprego – e não o emprego – está associado a um risco 2,7 vezes maior de as pessoas relatarem problemas de saúde. Uma outra pesquisa publicada no PubMed, em outubro de 2011, conclui que pessoas desempregadas têm 58% mais chance de desenvolver depressão. Um outro estudo publicado na revista Nature, agora em 2025, mostra que “estar trabalhando” protege mais da mortalidade do que a própria atividade física. E o que há fora do trabalho, ou mesclado com ele, que contribui para o adoecimento das pessoas? Motivos não faltam: redes sociais gerando cada vez menos contato real e mais virtual, impactando profundamente o número de pessoas vivendo em solidão; crianças com acesso aos smartphones de forma cada vez mais precoce; a natural ansiedade causada pela inteligência artificial e todos os seus possíveis usos; fake news por todos os lados; uma sociedade que nos exige cada vez mais desempenho em menos tempo; uma aparente quantidade absurda de opções e rumos a seguir, quer seja profissional ou pessoalmente, o que muitas vezes gera angústia e frustração. Soma-se a isso um cenário de guerras, violência, instabilidades políticas, econômicas etc. Para o antropólogo norte-americano Jamais Cascio, vivemos no mundo B.A.N.I., um acróstico inglês que significa um mundo: frágil, ansioso, não linear e incompreensível. Um mundo ansioso definitivamente não combina com saúde mental. A situação está ruim. E pode piorar bastante, infelizmente. Esse é o meu entendimento.
Confira a entrevista completa na edição de julho da Revista Proteção.