Quem já viveu sabe que chão de fábrica não perdoa. Eu era recém-chegada naquela fábrica quando conheci João (nome fictício), operador de produção. Não sei ao certo, mas os colegas diziam que toda vez que ele faltava no trabalho era porque ia ao dentista. Por isso, ganhou o apelido de Tubarão. Por sinal, todo mundo tinha um apelido por lá.
– “Por que Tubarão?”, perguntei a um trabalhador da mesma linha de produção.
– “Ah, doutora, a senhora não sabe que dente de tubarão nunca para de crescer? Pra ir tanto ao dentista só pode ser Tubarão” – e lá se vai o mecânico conhecido como Calango, chacoalhando os ombros de tanto rir. Eu soube que ele ganhou tal apelido porque andava rápido igual o pequeno lagarto em chão quente.
Sempre gostei de almoçar no restaurante de fábrica, em horários diferentes pra encontrar com turmas diversas. Penso que médico do trabalho precisa se misturar. Almoçava com trabalhadores de todos os níveis hierárquicos, do gerente ao almoxarife, alguns mais simpáticos do que outros. Tubarão estava no grupo dos simpáticos. Nos conhecemos no refeitório, discutindo futebol porque, afinal, todo restaurante que se preze fica ligado no Esporte Espetacular neste horário. Até que conheci o “outro” Tubarão.
Depois de fazer um levantamento das audiometrias da empresa, identifiquei um número de perdas auditivas que me preocupou. Pedi pra fazer a notificação dos casos. Minha solicitação caiu como uma ruidosa bomba no lugar. Era a primeira vez que um médico do trabalho pedia isso. Jura? Então, vamos resolver esse assunto, passar uma régua com os devidos registros, e cuidar de ter uma prevenção mais efetiva.
Junto com minha equipe, escalei o assunto para a diretoria, justifiquei a necessidade dos investimentos e obtive apoio para implantar um Programa de Conservação Auditiva, com mapeamento de fontes, dosimetrias, adoção de medidas de proteção coletiva e uma melhoria nos protetores auditivos. O gerente sugeriu que apresentássemos o projeto em uma reunião com o sindicato. Concordei de pronto.
No dia D, confesso que cheguei atrasada. Entrei esbaforida na sala de reuniões e dei de cara com uma cena de filme. Tubarão muito nervoso, batia a mão na mesa, falava alto, cobrava providências para com os colegas. Ele era do sindicato e eu não sabia? Paralisada pela surpresa, fiquei de pé um tempo. Tubarão me encarou muito sério:
– “E aí doutora, não vai falar nada?”, pergunta ele.
Era minha deixa. Expliquei o programa como um todo, solicitei a participação ativa dos trabalhadores, inclusive de representantes sindicais, principalmente nos testes dos novos protetores auditivos. Tubarão se voluntariou. Só no final da minha fala é que me dei conta de que ainda estava de pé no meio da sala. Ele tinha conseguido o efeito que queria.
No decorrer das semanas seguintes, propusemos um modelo moldado, que oferecia maior conforto e melhor vedação para as condições de trabalho específicas daquela área de produção. O especialista veio tirar os moldes e me alertou que as cores dos novos protetores deveriam chamativas para facilitar a inspeção de uso. Algum tempo depois, chegaram as provas para teste. Abro a caixinha com o nome do João/Tubarão e me deparo com um par de protetores cor de rosa-choque! Na hora de receber seu par, Tubarão olhou a caixinha, franziu a testa, lançou seu olhar ameaçador e, por fim, soltou uma gargalhada.
– “Tá me trolando, né, doutora? Só porque fiz cena naquela reunião, né? É meu papel, doutora. Tenho de brigar por meus companheiros. Pode deixar que vou usar este ‘treco’ cor de chiclete, mas a senhora me deve uma porque a moçada vai me tirar a maior onda”.
Saiu do serviço médico sem me dar chance de explicar que eu não tinha nada a ver com a escolha daquela cor. Decidi deixar por isso mesmo. Tubarão cumpriu sua palavra. Participou dos testes e contribuiu para melhorar a proteção auditiva de seus colegas. Virou parceiro. Ele tinha seu papel e eu tinha o meu. Continuamos almoçando vez por outra para glorificar as vitórias ou chorar as derrotas do Poderoso Timão – e também para dar algumas risadas. Tubarão me ensinou que aliados na defesa da saúde dos trabalhadores estão em todos os lugares e que nós, profissionais de SST, não podemos nos dar ao luxo de desperdiçar apoio.
Durante muitos anos não tivemos mais nenhuma perda auditiva induzida pelo ruído. Chegou a hora de sair daquela fábrica para trabalhar em outro lugar. A cautela foi minha boa conselheira e nunca perguntei qual era o apelido que os operadores tinham escolhido para mim. Certamente havia um, mas eu preferi não saber. Vai saber o que podia ser…
O blog Histórias de Vida e de Trabalho busca no dia a dia, histórias vividas ou contadas, reais ou em filmes, que possam nos dar base para discutir temas de saúde e segurança do trabalho. Marcia Bandini é Médica, especialista em Medicina do Trabalho, doutora pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atua na área de saúde do trabalhador desde 1994, é docente da área de Saúde do Trabalhador no Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Campinas. Mãe, mulher, escritora, cinéfila, cinófila e ativista em prol de boas causas.
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