(com a colaboração do Prof. Jorge da Rocha Gomes)
Lá pelos idos do século passado, os tempos eram outros, bem diferentes dos dias de hoje. Sapato era artigo caro e muito bem cuidado para durar. Em geral, os homens tinham dois pares, um preto e um marrom. Quando muito, havia um terceiro para ocasiões especiais, como um casamento. Por isso, o ofício de sapateiro era muito valorizado, tanto mais quanto melhor fosse a habilidade do artesão em recuperar pisantes maltratados pelo uso.
Nos anos de 1960, Seu Dias era famoso lá pelos lados de Taquara, perto de Porto Alegre. Tinha aprendido o ofício de sapateiro com o pai que, por sua vez, aprendeu com seu avô. A ponta do mindinho que faltava na mão direita anunciava que o ofício era duro. Aos 10 anos de idade, o aprendiz tinha sofrido o primeiro de muitos outros acidentes de trabalho na oficina. Máquina na sapataria não faltava – de cortar, de chanfrar, de costurar, de perfurar – já proteção faltava e muito. Só muitos anos depois, quando o filho se formou engenheiro, rompendo a tradição da família, é que as melhorias começaram mostrando ao sapateiro não era preciso ter dedo furado semana sim, a outra também para trabalhar.
Além das mãos hábeis, Seu Dias era conhecido por não resistir a contar um bom causo. O repertório incluía um pouco de cada coisa, de piada de papagaio a conto de pescador, mas o sapateiro tinha mesmo uma predileção por histórias de cobras. Dizia aos fregueses que o cinto que usava era herança do pai, feito da pele de uma cascavel que tinha se apossado de um relógio de ouro que estava em sua família há várias gerações. Segundo contava, o pai tinha perdido o relógio no caminho de casa. Era um daqueles modelos antigos, que só funcionava se o dono se dedicasse a dar corda todos os dias, girando o pino que ficava na parte de cima da joia. Inconformado, o pai procurava o relógio sempre que podia.
Um dia passagem por uma picada, o pai ouviu um “tic-tac” conhecido bem perto de uma moita na beira da estrada. Mal acreditou no que viu. Era o tal relógio que funcionava direitinho e ainda por cima estava na hora certa. Mas como isso era possível? Pois enrolada na peça estava uma cascavel que, segundo Seu Dias contava, passava a barriga no pino e dava corda no relógio. O pai não pestanejou. Com um golpe rápido, matou a cobra, resgatou sua a peça de ouro e levou a peçonhenta consigo.
Da cascavel, fez um cinto que Seu Dias herdou e não tirava do cós da calça. O relógio ficava pendurado ao lado do balcão para ilustrar a história que o sapateiro repetia a cada novo freguês que entrava. Diziam que o artesão vivia aumentando o tamanho da cobra e o tempo que o relógio levou pra ser resgatado. Alguns sugeriam que o sapateiro andava é com a cabeça afetada de tanto cheirar cola, afinal, cola de sapateiro é uma mistura de solventes que pode mesmo levar a alucinações. Pessoalmente, acho mesmo que o que contava era a criatividade do contador de história.
Não que a gente não deva se preocupar porque intoxicações agudas acontecem onde se manipula produtos químicos diversos como as colas e as tintas da sapataria, principalmente em ambientes fechados. Com o uso crônico, os efeitos aparecem ao longo dos anos e são muitos, como degeneração dos neurônios, lesões nos rins, no fígado, na medula óssea, tremores e perda d controle dos músculos. Associado ao ruído das máquinas, os solventes ainda contribuem para a perda progressiva da audição e há quem diga que o sapateiro estava mesmo ficando meio surdo. Alheio aos riscos, Seu Dias ria e emendava um causo no outro.
Certo dia, eu aguardava o troco de um serviço e Seu Dias começou a contar da pescaria do fim de semana, no sítio que tinha lá na serra. Tinha levado um susto danado. Apesar do frio congelante que fazia, o “cumpadi” e ele tinham decidido pescar porque gaúcho que se preza não se esconde de geada. Saíram ainda de madrugada, com aquele gelo todo ainda cobrindo a mata de branco. Acenderam uma fogueira na beira do rio para esquentar a água do chimarrão. Lá pelas 11h, Seu Dias tirou do pessuelo uma baita costela e foi procurar um pedaço de pau que pudesse ser usado como espeto. Encontrou um perfeito, ao lado de um buraco no chão. Ajeitou a costela no espeto e deixou perto do fogo pra ir assando devagarinho. Dali a pouco, o “cumpadi” grita: “Dias, corre que a costela tá fugindo”. O sapateiro foi defender o almoço e quase cai de costas. O espeto era uma cobra congelada que, com o calor do fogareiro, tinha descongelado. Deu tempo de salvar a costela e o réptil seguiu para a toca. Diante de meu olhar incrédulo, Seu Dias jurava de pé junto que a história era a mais pura verdade, que a costela ficou uma delícia e que a pescaria foi ótima. Peguei o troco e o sapato. Olhei para os vidros de colas e de tintas – todos fechados. As janelas abertas e a porta ampla proviam uma boa ventilação ao ambiente. A história não parecia efeito da cola. O sapateiro ajeitou o cinto de cascavel ao dizer: “volte sempre que tenho mais causos”. Ah, esse Seu Dias!…
O blog Histórias de Vida e de Trabalho busca no dia a dia, histórias vividas ou contadas, reais ou em filmes, que possam nos dar base para discutir temas de saúde e segurança do trabalho. Marcia Bandini é Médica, especialista em Medicina do Trabalho, doutora pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atua na área de saúde do trabalhador desde 1994, é docente da área de Saúde do Trabalhador no Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Campinas. Mãe, mulher, escritora, cinéfila, cinófila e ativista em prol de boas causas.
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