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terça-feira, 01 de julho de 2025

Entrevista – Marcos Mendanha: Prioridade máxima

Edição 403 – Julho/2025

Médico fala de saúde mental no trabalho, dificuldades de diagnóstico e gestão nesta área pelas empresas

Entrevista à jornalista Daniela Bossle

Marcos Mendanha é médico, advogado e professor. Especialista em Medicina do Trabalho, Medicina Legal e Perícia Médica, e Direito do Trabalho, ele percebeu logo que a área de Medicina do Trabalho tinha interfaces com muitas outras, o que lhe motivou a seguir se aprofundando, com grande interesse na saúde mental ocupacional. Pós graduando em Neurociências e Comportamento, hoje divide a sua agenda entre a coordenação da Faculdade Cenbrap, que promove estudos, cursos e eventos sobre psiquiatria e saúde mental do trabalhador e ministrando palestras em todo o país sobre temas afins.

Nesta entrevista Mendanha fala da explosão dos afastamentos do trabalho por transtornos mentais no último ano e vai além: para ele, a principal causa da elevação é o sistema digital do governo que permite aos segurados obter benefícios sem perícia médica. Mesmo assim, o aumento não deixa de ser preocupante exigindo adequado gerenciamento deste risco pelas empresas. Mas o especialista critica o novo texto sobre riscos psicossociais da NR 1, que considera “vago, impreciso e trazendo muito mais perguntas do que respostas”. Quando fala da síndrome de burnout, tema do seu último livro, traz uma informação pouco difundida: que o burnout, na verdade, não está classificado pela OMS como doença. Para ele, esta falha de entendimento no Brasil tem gerado diagnósticos e condutas equivocadas e mais sofrimento mental.

Você é um profissional com múltiplas formações e atuações bem diversificadas, mas o tema transtorno mental e trabalho tem sido uma prioridade em sua agenda. Esta é a pauta do momento?

Sim, creio que seja a pauta do momento e do meu momento! Como médico, quando escolhi a Medicina do Trabalho como especialidade, logo percebi a riqueza das suas interfaces. Foi pela Medicina do Trabalho que fiz outra graduação em Direito e posteriormente uma pós-graduação em Direito do Trabalho. Também pela Medicina do Trabalho, fiz uma pós-graduação em Psiquiatria pela Faculdade Cenbrap, instituição que tenho a honra de dirigir. Com essa bagagem escrevi meu último livro “O que ninguém te contou sobre burnout”, da Editora Mizuno, que me abriu – e ainda abre – muitas outras portas profissionais. E como a agenda é limitada, posso dizer que sim, o tema transtornos mentais e sua interface com o trabalho é atualmente uma prioridade na minha agenda profissional.

Muito tem se falado a respeito da crise na saúde mental do brasileiro com um número recorde de afastamentos do trabalho em 2024 por transtornos mentais. Porém esses benefícios não são acidentários pelo que informa a Previdência. Qual a sua interpretação?

De 2023 para 2024 houve um aumento de 68% no número de afastamentos por transtornos mentais no Brasil. Foram quase 500 mil afastamentos no último ano. Isso é absolutamente verdadeiro. Mas podemos dizer que o trabalho é o principal responsável por esses números? Não. Ao contrário do que muita gente imagina, de 2021 para 2024 a porcentagem dos números de transtornos mentais relacionados ao trabalho só caiu, segundo dados do próprio INSS. Era 5,2% em 2021; 4,9% em 2022; 3,7% em 2023; e chegou a 2,1% em 2024. O que explica esse número de afastamentos tão expressivo então? A principal hipótese se chama Atestmed, que desde 2023 permite que muitos segurados do INSS consigam benefícios sem a realização de perícias médicas. O objetivo anunciado da ferramenta é muito nobre, diminuir as filas do INSS, o que, num primeiro momento, de fato ocorreu. Mas o efeito colateral foi um aumento brutal no número de afastamentos e não só por transtornos mentais. O número de afastamentos por doenças osteomusculares também aumentou mais de 60% no ano passado, totalizando quase 900 mil afastamentos. Tudo isso elevou os gastos do governo para um patamar surpreendente. Tanto assim que, ainda em 2024, voltou a ser obrigatória a perícia médica presencial para possíveis benefícios por doenças osteomusculares. Na mesma linha, a recente Medida Provisória 1.303 de 11 de junho de 2025 diminuiu o prazo de benefícios concedidos por via Atestmed, de 180 dias para 30 dias apenas, ou seja, mais uma medida para remediar o aumento excessivo dos gastos, o que foi constatado pelo próprio governo.

De qualquer forma é um número muito alto. Foram quase 500 mil benefícios concedidos por conta de transtornos mentais no ano passado. Além do Atestmed, o que mais pode ter contribuído para esta explosão de casos?

Sim, é um número muito expressivo. Para além do Atestmed, para além do trabalho, o número de diagnósticos de transtornos mentais tem aumentado entre todas as faixas etárias, sobretudo entre crianças, jovens e idosos. Chama a atenção o fato de crianças e idosos estarem no topo dessa lista. Isso porque são pessoas que sequer entraram no mundo do trabalho, ou até já saíram dele. O mundo não parece saudável. Alguns trabalhos certamente contribuem com isso, mas o trabalho, no sentido geral, não é o maior algoz desse adoecimento. Ao contrário. O bom trabalho protege as pessoas. Segundo a revista The Lancet, de outubro de 2023, o desemprego – e não o emprego – está associado a um risco 2,7 vezes maior de as pessoas relatarem problemas de saúde. Uma outra pesquisa publicada no PubMed, em outubro de 2011, conclui que pessoas desempregadas têm 58% mais chance de desenvolver depressão. Um outro estudo publicado na revista Nature, agora em 2025, mostra que “estar trabalhando” protege mais da mortalidade do que a própria atividade física. E o que há fora do trabalho, ou mesclado com ele, que contribui para o adoecimento das pessoas? Motivos não faltam: redes sociais gerando cada vez menos contato real e mais virtual, impactando profundamente o número de pessoas vivendo em solidão; crianças com acesso aos smartphones de forma cada vez mais precoce; a natural ansiedade causada pela inteligência artificial e todos os seus possíveis usos; fake news por todos os lados; uma sociedade que nos exige cada vez mais desempenho em menos tempo; uma aparente quantidade absurda de opções e rumos a seguir, quer seja profissional ou pessoalmente, o que muitas vezes gera angústia e frustração. Soma-se a isso um cenário de guerras, violência, instabilidades políticas, econômicas etc. Para o antropólogo norte-americano Jamais Cascio, vivemos no mundo B.A.N.I., um acróstico inglês que significa um mundo: frágil, ansioso, não linear e incompreensível. Um mundo ansioso definitivamente não combina com saúde mental. A situação está ruim. E pode piorar bastante, infelizmente. Esse é o meu entendimento.

O fato é que o limiar entre o que é doença mental relacionada ao trabalho e o que não tem relação com o trabalho é muito tênue, né? Como diferenciar?

Muito tênue, por vezes, inexistente. Quando o estresse nos acomete, uma cascata de reações bioquímicas é ativada em nosso organismo. Isso aumenta, por exemplo, o cortisol na corrente sanguínea. Não existe o “cortisol do trabalho”, “o cortisol do casamento ruim”, “o cortisol do trânsito congestionado”, nada disso. Assim, os maus efeitos do estresse crônico ocorrem em nós, independentemente da origem estressora. Não é possível afirmar com exatidão de onde partiu o estresse que nos causou algum mal. Mas é possível, com boas chances de acerto, afirmar de onde ele não partiu. Por exemplo: um ambiente de trabalho sem sobrecarga, onde os trabalhadores são bem treinados e possuem autonomia para executar suas tarefas; onde há bons feedbacks e recompensas suficientes; onde as conversas são claras, assertivas e não violentas; onde há senso de coletividade, respeito e apoio mútuo; onde não há assédio; onde as pessoas são tratadas com justiça; onde não há conflito de valor entre os trabalhadores e o trabalho. Esse é um ambiente que certamente promove saúde e engajamento, e não esgotamento e adoecimento. Quem não gostaria de trabalhar num lugar desse? Todos que trabalham, em sã consciência, querem um ambiente laboral assim.

Mas os profissionais estão preparados para gerenciar este risco? A entrada em vigor da nova NR 1 e a gestão dos riscos psicossociais pelas empresas foi adiada para maio de 2026. Qual sua opinião sobre a decisão em prorrogar o prazo?

Infelizmente, no Brasil, o adiamento de uma norma frequentemente implica em inércia. De onde enxergo, dessa vez, não está diferente. Muitos empregadores que até o início do ano estavam engajados quanto ao tema já “riscaram da agenda” essa pauta, e irão retomá-la apenas quando o novo texto da NR 1 estiver prestes a entrar em vigor de fato. É claro que existem ótimas exceções. Por outro lado, tenho uma convicção particular de que o texto da NR 1 que foi adiado é vago, impreciso e traz muito mais perguntas do que respostas, o que não é compatível com a segurança jurídica de qualquer norma de cumprimento obrigatório. Na minha opinião, poderíamos aproveitar esses 360 dias de adiamento para aperfeiçoar e melhorar a norma, mas infelizmente não vejo esse movimento. Penso que há que se ter muito mais clareza e riqueza de detalhes para que o novo texto da NR 1 seja efetivamente cumprido e alcance os efeitos desejados. Países como México e Chile, por exemplo, possuem normas bastante claras sobre a mensuração, gradação e manejo dos riscos psicossociais nas organizações. Seriam ótimas referências e inspirações para melhoria da nossa legislação.

Parece que há inclusive um certo temor em reconhecer o risco psicossocial e colocá-lo no PGR da empresa porque desta forma ela estaria assumindo a culpa pelos transtornos mentais eventualmente apresentados por seus funcionários. Ao mesmo tempo, se eu não reconhecer que o risco existe e a fiscalização constatar que ele existe também pode dar problema. O que fazer?

Olha, de acordo com as melhores práticas, deixar de cumprir uma lei ou norma não pode ser uma opção. A legislação precisa ser obedecida por todas as organizações e, justamente por isso, deve ter um texto claro e o mais detalhado possível. No que tange à inserção dos riscos psicossociais no PGR, entendo que o empregador que o faz não assume a culpa por um eventual adoecimento mental de quem quer que seja. Para justificar essa tese, pego emprestado julgados sobre a CAT, Comunicação de Acidentes de Trabalho. Conforme vasta jurisprudência e ao contrário do que muitos pensam, a simples emissão da CAT pelo empregador não significa confissão de responsabilidade ou existência de uma doença ocupacional, o que deve ser analisado caso a caso do ponto de vista técnico-jurídico. Interpreto a colocação dos riscos psicossociais no PGR de forma análoga. Os riscos psicossociais estarem no PGR é uma coisa, a configuração de nexo causal ou concausal entre um transtorno mental e o trabalho é outra coisa.

Como as empresas podem usar mais este um ano de prazo para introduzir uma verdadeira gestão dos riscos psicossociais?

Primeiramente se informando. Gerir os fatores psicossociais de forma a mitigar ou eliminar os riscos repercute em maior produtividade e lucratividade para as organizações. Inúmeros estudos ao redor do mundo já comprovam isso. Esse entendimento deve ser o ponto de partida. Ainda que, na minha opinião, o novo texto da NR 1 careça de mais clareza e detalhes, o objetivo da norma é inquestionavelmente nobre: gerar bem-estar e saúde para os trabalhadores, e consequentemente mais produtividade e sustentabilidade para as organizações. Quando essa convicção se consolida, tudo fica mais fácil, para todos. Nesse particular, penso que o próprio governo poderia usar o ano de 2025 para propagar esse conhecimento de uma forma bem mais ostensiva e didática. Gerir os fatores psicossociais não pode ser visto como um mero cumprimento de norma, mas como uma ação empresarial estratégica. Mas é preciso letrar a sociedade quanto a isso.

Qual o detalhamento que falta na NR 1 em relação à gestão dos riscos psicossociais? Você se refere à indicação de ferramentas que devam ser usadas para avaliação, identificação, monitoramento?

Quando a gente observa a própria NR 1, há uma série de citações sobre riscos físicos, químicos e biológicos. Já o termo “psicossocial” aparece apenas três vezes. Na NR 17, que fala sobre ergonomia, o termo também só aparece três vezes. Quando falamos de riscos psicossociais, talvez seja o mais difícil de ser avaliado. É muita complexidade para tão pouco detalhamento. Quando eu falo que a norma é lacônica e imprecisa, é que ela precisa indicar mais detalhes, não necessariamente uma ferramenta. Por exemplo, se não é para usar a ferramenta e é para fazer avaliação através de grupos focais, de conversas com o time, como devem ser feitas essas conversas? O que deve ser feito antes mesmo de iniciarem essas conversas? Deve haver um padrão. A norma do Chile, por exemplo, diz que são necessários pelo menos dois meses para sensibilizar os trabalhadores. São dois meses só explicando o porquê daquela avaliação, explicando que os dados serão mantidos em anonimato, que a pesquisa é espontânea, que ninguém é obrigado a responder. A norma chilena enfatiza que se 60% dos trabalhadores responderem, já é uma pesquisa de amostra satisfatória. A gente não tem essas informações na nossa norma, está todo mundo no escuro, sem ideia até de como começar. Para empresas maiores as ferramentas – questionários – são muito importantes. Existem dezenas de ferramentas e mesmo entre as validadas, algumas medem riscos que outras não medem. Quais riscos serão fiscalizados pelos auditores e com base em qual fonte técnica? Não é difícil deixar isso mais claro. Outros países fazem isso. Todos ganharão com uma norma mais clara e detalhada.

Só para você ter uma ideia, o ERI que é um questionário validado em português e usado internacionalmente, não pergunta nada sobre autonomia e a falta de autonomia é um risco psicossocial muito importante. Ou seja, segundo o Ministério do Trabalho posso usar qualquer ferramenta. Ele sugere que seja validada, essa é uma ferramenta validada, mas o fiscal do MTE quando chegar lá vai cobrar alguma coisa sobre falta de autonomia ou não? Ou seja, mesmo eu seguindo o que o Ministério do Trabalho colocou no Guia, eu posso ser penalizado. Então falta muita clareza para uma norma que é coercitiva, que é de cumprimento obrigatório, isso é insegurança jurídica demais. Precisava explicar como é que se deve sensibilizar os trabalhadores, quais são as ferramentas possíveis de serem utilizadas porque aí quando o fiscal do Ministério do Trabalho for lá, ele só pode autuar vocês se eventualmente vocês não tiverem usado as ferramentas especificadas. Aí o jogo fica claro para todo mundo, entendeu? Do jeito que está, tá muito lacônico, tá muito impreciso. Ninguém sabe o que medir, ninguém sabe o que vai ser auditado quando o fiscal for na empresa. Então que seja uma ferramenta só e que se diga: nós iremos usar como referência essa ferramenta. Está ótimo, já ia melhorar a vida de todo mundo. Talvez nem tivesse sido adiada a norma. O fato de ter sido adiada é porque ela está imprecisa. Tanto que quando o adiamento foi divulgado, a bancada dos empregadores estava junto com a bancada dos trabalhadores. Dizer que foi apenas pressão dos empregadores parece não ser consistente com o que de fato ocorreu. Inclusive teve gente da bancada dos trabalhadores que depois deu entrevista dizendo que sim, realmente a norma precisava de mais detalhes, que as pessoas precisavam ser mais bem informadas sobre ela. Tanto é que a ideia inicial era de um ano para que a norma tivesse um efeito apenas didático. Ou seja, as pessoas não estavam entendendo o que estava lá e isso dentro da CTPP foi unânime: bancada de empregadores e de trabalhadores concordaram quanto a isso. A iniciativa de adiamento pode até ter partido da bancada dos empregadores, mas houve um consentimento da bancada dos trabalhadores também. Eles se sensibilizaram com essa necessidade.

Dentre os transtornos mentais relacionados ao trabalho, quais são aqueles que você apontaria como os mais graves? E quais os mais frequentes?

Os transtornos mentais relacionados ao trabalho mais frequentes, sem dúvida, são os transtornos ansiosos e o transtorno depressivo. Os dados do INSS comprovam isso. Esses mesmos transtornos podem se apresentar clinicamente de forma leve até a forma grave, o que depende basicamente do grau de sofrimento e prejuízo que geram aos trabalhadores e seu entorno. O transtorno de estresse pós-traumático, embora menos frequente, também pode se apresentar de forma muito grave.

Este dado que você citou no início e que nós também divulgamos na reportagem de abril, de que o número de benefícios acidentários por transtornos mentais relacionados ao trabalho tem caído nos últimos anos, faz sentido? De 5% em 2021 para 2% em 2024… A subnotificação pode estar por trás disto? Como você avalia esta diminuição e esse número tão pouco expressivo?

Na verdade, os números não são pouco expressivos. O que aconteceu foi que o número geral subiu e a porcentagem de transtornos mentais relacionados ao trabalho caiu, mas em números absolutos, os números se mantiveram expressivos. Em relação à subnotificação, quando falamos de nexo entre uma determinada doença e o respectivo trabalho, segundo o professor Lenz Cabral, podemos dizer que existem quatro “gerações do nexo”. A primeira na década de 70, quando as NRs surgiram. O Brasil estava se industrializando muito e a gente tinha muitos acidentes de trabalho típicos. Por exemplo, a pessoa caia da escada e tinha uma fratura no tornozelo. O nexo aqui é incontestável, ninguém discute se aquilo foi um acidente de trabalho ou não. Nesse caso você tem uma emissão de CAT alta e, consequentemente, uma subnotificação muito pequena. Na década de 80, vem a segunda geração do nexo: Perda Auditiva Induzida por Ruído (PAIR). Aqui o nexo começou a ficar mais difícil. Apesar de podermos usar audiogramas e outros exames complementares para confirmar o diagnóstico, a pessoa podia perder audição devido ao ruído ocupacional ou extra ocupacional. Quando começamos a ter mais incerteza, o número de CATs diminuiu. Apesar de a lei dizer que a CAT deve ser emitida até na suspeita de doença ocupacional, isso é muito pouco usado na prática. Costuma-se emitir CAT apenas na certeza, e não na suspeita. Se o nexo fica mais difícil, como no caso da PAIR, a tendência já é uma diminuição de CAT. Vamos para a terceira geração do nexo, na década de 90, quando observamos uma explosão de casos de Lesões por Esforços Repetitivos ou Doenças Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho (LER/DORT). Observe, por exemplo, a dorsalgia. Quando se fala de alguém com dor nas costas, há uma dificuldade ainda maior de saber se o que originou essa dor foi o trabalho ou não, ou seja, há dificuldade de se configurar o nexo. Inúmeras questões extraborais podem gerar dorsalgias, o que gera dúvidas quanto ao nexo e, consequentemente uma queda na emissão das CATs. Quanto à confirmação da doença, pode-se fazer uma ressonância, uma tomografia, mas nenhum exame confirmará a origem da doença, apenas a sua existência. Vamos para a quarta geração do nexo: de 2000 para cá, com o crescimento dos transtornos mentais relacionados ao trabalho, aí que o nexo ficou difícil mesmo. E não só o nexo, o diagnóstico também. Quando a gente fala de PAIR e LER/DORT, o nexo já fica mais difícil do que de um acidente típico, mas pelo menos temos exames complementares que confirmam o diagnóstico clínico. Quando falamos de transtornos mentais, não há nenhum exame complementar que confirme o diagnóstico, somado a uma imensa dificuldade de estabelecer nexo. Lembremos que crianças estão mais doentes mentalmente do que nunca, são pessoas que nunca trabalharam. Na maior parte das vezes, há muito mais incertezas do que certezas na hora de se estabelecer um nexo entre um transtorno mental e trabalho, já que existem fatores fora do trabalho que contribuem com os transtornos mentais. Quanto maior essa incerteza, a emissão de CAT será menor. Tem subnotificação nisso? Tem, mas há também uma grande dificuldade técnica do estabelecimento de nexo. Para provocar, se seguíssemos a literalidade do artigo 169 da CLT e todas as empresas emitissem CAT até na suspeita de transtornos mentais relacionados ao trabalho, talvez, no mundo de hoje, a CAT tivesse que ser emitida para 100% dos trabalhadores com algum transtorno mental diagnosticado. Se é difícil provar ou excluir o nexo, a suspeita passa a ser a regra.

O burnout vem ganhando cada vez mais visibilidade entre as doenças relacionadas ao trabalho. Qual a situação hoje em relação a esta doença? Tem havido diagnósticos e condutas adequadas?

Conforme o entendimento mais recente da OMS, consubstanciado na CID-11, o burnout não está classificado no grupo das doenças ou transtornos mentais, ou seja, o burnout não é uma doença, não tem o mesmo nível de gravidade e não gera os mesmos graus de sofrimento e prejuízo que as doenças ou transtornos mentais geram. Se não fosse assim, obviamente que o burnout estaria classificado pela OMS como uma doença. Não está. Não sendo uma doença, as residências de psiquiatria, normalmente, não se ocupam do burnout. Na outra ponta, para muitos médicos do Trabalho, psicólogos etc., os psiquiatras – que, em regra, não estudam o burnout em suas formações – são os maiores conhecedores do burnout. Para piorar, o nosso Ministério da Saúde, à revelia da OMS, considera o burnout como uma doença. Instala-se, então, uma verdadeira confusão sobre o tema, o que explica, na minha opinião, diagnósticos e condutas bastante equivocados. Tem muita gente verdadeiramente doente do ponto de vista mental, em franco e insuportável sofrimento, recebendo o glamouroso e equivocado diagnóstico de burnout. O grande problema disso é que diagnósticos errados implicam em tratamentos errados. Aliás, por não ser considerado uma doença, o burnout não tem sequer um protocolo de tratamento médico reconhecido, como tem a depressão, os transtornos de ansiedade etc. Nesse contexto, o mercado oferece todo tipo de tratamento para o burnout: de floral à hipnose, até doses cavalares de antidepressivos e ansiolíticos. Terreno fértil para toda sorte de iatrogenia e perpetuação do sofrimento alheio. Uma pena.

Fiquei surpresa… Pra mim burnout é um transtorno mental, uma doença relacionada ao trabalho. Pode explicar melhor o conceito de burnout de acordo com a OMS? E se não há protocolo de tratamento médico conhecido, o que se faz com ele? E quem deveria estar habilitado a diagnosticá-lo?

O conceito de burnout de acordo com a OMS está na CID 11, Classificação Internacional de Doenças, versão 11. Mas se está na CID não é doença? Não. Nem tudo que está na CID é doença. A CID tem código, por exemplo, para uma consulta médica, que não é doença. Tem código para a pobreza. Tem código para encarceramento ou prisão. Então, praticamente todas as situações têm códigos na CID, mas existem os grupos específicos de doenças. O grupo de doença mental é o que na CID 10 começa com a letra F. Ali estão as doenças ou transtornos mentais. Na própria CID 10, o burnout começa com a letra Z. É o mesmo grupo que está, por exemplo, o encarceramento e a pobreza, que não são doenças. O burnout está lá. No CID F tem depressão, transtorno de pânico. Essas são doenças. Já na CID 11 as doenças começam com o número 6, e o burnout tem o código Q, ele não está no grupo das doenças. Então qual é o conceito da OMS? Burnout é uma síndrome que tem o seguinte grupo de sintomas: exaustão, esgotamento, distanciamento afetivo do trabalho, diminuição de eficiência ou eficácia. Precisa estar relacionado ao trabalho e só a ele, não pode estar relacionado a outras áreas da vida. E o mais importante: para você diagnosticar o burnout, você primeiro precisa excluir doenças mentais, como por exemplo, depressão, transtorno de pânico, transtorno de adaptação. Porque as doenças são mais graves, por isso são doenças. Se não fossem graves, não seriam doenças. As doenças são mais graves, têm protocolo de tratamento médico reconhecido no mundo todo. Já o burnout não é doença, não tem protocolo de tratamento reconhecido. Ele tem o mesmo núcleo sintomatológico da fadiga, só que fadiga a gente usa para qualquer causa, o burnout a gente usa para trabalho, mas os sintomas são os mesmos: exaustão, esgotamento, diminuição de eficácia. Por exemplo, um casamento ruim pode gerar exaustão, esgotamento, a pessoa diminui a eficiência dela? Sim, ela está fatigada pelo casamento. Posso dizer que existe o burnout conjugal? Não, porque para a OMS o burnout sempre será ocupacional. Como é que você trata isso? Não precisa de remédio nenhum, você trata com descanso efetivo. Mas não é com uma noite de sono, é mais do que isso, mas o descanso efetivo tem que acontecer. Se não resolveu é porque o sofrimento é maior e se o sofrimento é maior, já não é burnout, é doença. E ela pode ser causada pelo trabalho? Claro que pode ser causada pelo trabalho. Quem está habilitado a diagnosticar o burnout? Esta é uma questão polêmica, muitas vezes corporativa, mas eu não vou fugir do debate, não. Segundo a OMS, que traz o conceito que eu uso e que é o mais usado no mundo, para você chegar ao diagnóstico de burnout é preciso primeiro excluir doenças. Quem exclui doença se não aquele que pode confirmar? Faço aqui uma analogia com o exame de paternidade. O que confirma a paternidade se não aquele exame que pode excluir a paternidade? Então quem confirma a doença? É o médico, isso é ato médico, tá na nossa legislação brasileira. Então, me parece que o diagnóstico de burnout, ele precisa passar pelo médico pelo menos para que ele exclua a doença. Se esse é o profissional que confirma, ele é também quem exclui. Então o trabalhador precisa passar pelo médico. Uma vez que o diagnóstico está excluído, aí a confirmação pode até ser feita por um outro profissional da saúde.

E por último perguntar sobre o seu livro e fazendo um trocadilho com o título lhe pergunto: o que ninguém “nos” contou sobre burnout?

Basicamente que não existe um tipo só de burnout, existem pelo menos quatro. Há o burnout do senso comum, que é o burnout que tá na boca do povo, que é quando você encontra alguém e a pessoa fala assim: “Nossa, tô muito cansado, tô com burnout”. É o burnout que impregnou no linguajar das pessoas e é sinônimo de qualquer cansaço. Do ponto de vista técnico existe o burnout de um psicólogo chamado Herbert Freudenberger, que é considerado o pai da síndrome de burnout. Pra ele tinha como núcleo maior a exaustão, mas o burnout podia ser causado pelo trabalho, pelo casamento, por vício em jogo, em sexo, por falta de ética na vida pública, por falta de recursos do planeta. Então o burnout podia ser causado por qualquer coisa. Ainda na década de 70 aparece o que eu chamo de Burnout de Christina Maslach, que fez um questionário chamado MBI, Maslach-Burnout Inventory, e esse questionário se tornou praticamente sinônimo de burnout em todo o mundo. Até hoje mais de 80% das pesquisas sobre burnout usam esse questionário. Para ela, o burnout tinha uma tríade: exaustão, esgotamento, distanciamento mental do trabalho, que ela chamou de cinismo, e por último, diminuição de eficácia. Esse questionário dela avalia essas três dimensões. O problema é que esse questionário é muito inespecífico. Então, por exemplo, exaustão e esgotamento também estão presentes na depressão. Diminuição de eficácia também está presente na depressão. O questionário dela não faz diagnóstico diferencial entre, por exemplo, o que é depressão e o que ela chama de burnout. O quarto e último tipo de burnout que é o que eu uso e que hoje é o mais usado no mundo, é o conceito que vem da OMS, que foi colocado na CID-11. Para a OMS o burnout também tem as três dimensões que Maslach falou, exaustão, esgotamento, distanciamento afetivo do trabalho e falta de eficiência, porém o burnout não é considerado uma doença. Ao contrário, para você chegar ao diagnóstico de burnout, você primeiro precisa excluir as doenças. E uma outra coisa interessante que a OMS fala, assim como Maslach falou, o burnout tem que estar relacionado com o trabalho. Em síntese acho que o que ninguém contou sobre o burnout é por que existem vários tipos, né? E aí cada um precisa escolher a sua referência. A referência que eu escolhi para mim, com todo respeito aos que escolhem outras, é a referência que hoje é a mais importante no mundo, que é a referência da OMS que está na CID-11. Referência que diz que o burnout é uma síndrome com o seguinte grupo de sintomas: exaustão e esgotamento, distanciamento afetivo do trabalho e diminuição da eficácia. O burnout precisa estar exclusivamente relacionado ao trabalho e para que se chegue ao seu diagnóstico, é preciso excluir doenças mentais, porque o burnout não é uma doença mental segundo a OMS.

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