quarta-feira, 18 de junho de 2025

Domingas, a médica e a comunidade

(alerta de spoilers)

“Você já viu Bacurau”? Provavelmente esta foi a frase mais ouvida no final de 2019, especialmente após o merecido prêmio do júri no Festival de Cannes. Sim, assisti duas vezes ao filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, a primeira como cinema, a segunda como objeto de estudo. O longa-metragem acabou no centro de uma infrutífera polêmica ideológica. Bobagem! Bacurau é cinema de primeira, com produção de qualidade, e deve ser visto como o bom filme que é.

Mês passado, recebeu exibição gratuita seguida de debate no Ciclo de Cinema e Psicanálise, promovido pela Folha de São Paulo. Inspirada pelo evento, hoje vamos de Bacurau e seus personagens interessantíssimos. Entre tantos, é difícil escolher um, mas optei pela médica interpretada por Sônia Braga. Para mim, Domingas representa a alegria e a dor da profissão, por isso, faço aqui um exercício imaginativo sobre sua história de vida e de trabalho.

Tudo indica que Domingas nasceu ali mesmo no sertão. Imagino sua infância, brincando no chão de terra, em estripulias tão inocentes quanto perigosas. De onde teriam nascidos os sonhos de ser médica? Acho que a menina Domingas devia gostar de cuidar das pessoas, talvez inspirada por Dona Carmelita, a matriarca da comunidade. Certamente, sua família não tinha R$ 1 milhão para que ela estudasse em uma faculdade privada. Então, a moça deve ter se esforçado muito para entrar em uma universidade pública, talvez com a ajuda do professor que inspirou Plínio. Provavelmente estudou na Universidade Federal de Pernambuco, num tempo em que o Ministério da Educação investia no ensino gratuito para formar profissionais de excelência, sem se preocupar com “balbúrdia” ou cortes de bolsas.

Não sei se Domingas fez residência em Medicina de Família e Comunidade. Como Bacurau é uma distopia futurista, quero acreditar que sim. Formada, a médica retorna para sua cidade, no tal “Brasil profundo”, lembrado apenas em época de eleição. O dinheiro público investido em sua formação foi valioso. Domingas é respeitada em Bacurau, mesmo que não seja chamada de doutora em momento algum do filme. Isso não a diminui, pelo contrário.  Talvez ela seja a personagem mais importante do filme, com suas ações e contradições.

Ela tem seus sofrimentos e busca alívio onde pode, recorrendo ao álcool ocasionalmente. Pode ser a frustração de ver a situação política do país em que vive, ou o descaso do governo com a saúde pública, ou a solidão. Não se sabe o motivo, mas de vez em quando a médica embriagada faz uma cena em público, como no enterro de Carmelita. Humana e ciente de suas vulnerabilidades, ela é humilde para pedir desculpas. Bonito isso.

Apesar de uma certa amargura que paira no ar, é uma médica dedicada e busca todos os meios ao seu alcance para fazer funcionar o único Centro de Saúde. Teresa é sua aliada para conseguir medicamentos e vacinas. Como Domingas, participa ativamente das discussões naquela comunidade como se estivesse em um Conselho Municipal de Saúde. A médica alerta os moradores sobre os psicotrópicos distribuídos pelo prefeito corrupto, curiosamente apresentados na forma de supositórios. Que mensagem é essa?

Domingas não julga – ou tenta não julgar. Segue o Código de Ética Médica, porque a “medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e deve ser exercida sem discriminação de nenhuma natureza”. Assim, ela escuta as queixas da moradora com ressaca e acolhe o boêmio expulso de casa pela esposa, desde que ele durma na enfermaria sem atrapalhar os demais pacientes. Busca conciliações até com os inimigos. Cuida dos ferimentos de Kate, independente do que a forasteira tenha feito antes. Oferece guisado e suco de caju para Michael.

No meio do sertão, o avental branco e sujo de sangue de Domingas nos lembra que médico não se forma em hospital, mas cuidando de gente em qualquer lugar. Sim, é preciso ter melhores condições de trabalho para os médicos, sem que isso signifique desassistir a população. Alguns podem dizer que esta é uma visão romantizada da medicina, mas eu conheço inúmeras Domingas e Domingos pelo Brasil. Mais do que nunca, penso que é preciso reconhecer e valorizar esses bons médicos.

E você, ainda não viu “Bacurau”? Assista e escolha sua história. São muitas e são boas.


O blog Histórias de Vida e de Trabalho busca no dia a dia, histórias vividas ou contadas, reais ou em filmes, que possam nos dar base para discutir temas de saúde e segurança do trabalho. Marcia Bandini é Médica, especialista em Medicina do Trabalho, doutora pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atua na área de saúde do trabalhador desde 1994, é docente da área de Saúde do Trabalhador no Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Campinas. Mãe, mulher, escritora, cinéfila, cinófila e ativista em prol de boas causas.
historiasdevidaetrabalho@gmail.com

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